quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Até que a voz me doa!!!




Embriagada pelo sono, como nas noites de excessiva folia, partilha-se tudo e com todos, sem vergonhas e demasiado à vontade, como se parte do cérebro já adormecido não recorde que a ressaca vem sempre no dia seguinte e que em todas as vezes aparece sempre alguém que capta o momento fotograficamente, para o não deixar esquecer. Aqui deixo a minha primeira tentativa de uma curta que escrevi em tempos, porque afinal, julgo, são estes momentos que nos permitem enxergar no futuro a evolução. E que se lixe tudo o resto!


Cena 1
EXTERIOR, RUA DE ALFAMA, FIM DE TARDE
Raul está sentado no degrau da sua casa. Com os braços caídos, olhando o chão, mostra um ar tão pesado quanto o remorso que carrega. A rua está deserta e a sua roupa gasta confunde-se com a fachada velha dos prédios.
Só o vento quebra o silêncio.
Com uma rajada mais forte, Raul sente um arrepio que o faz tremer, levanta a cabeça e mira o alto da rua. Não vê ninguém e volta a fechar-se na sua concha.
Fica assim mais uns segundos dorido pela lembrança dos seus actos, quando, de repente, o barulho de uma bola a rolar na sua direcção o faz reagir. Levantando-se, corta-lhe a descida. E eis que surgem dois malandros aos gritos: “Raul! Raul! Anda jogar! Anda!”
Raul passa-lhes a bola, hesita um bocado e com a voz tremida pergunta-lhes: “Viram a Mariana?”
“Já partiu. A Dona Otília pôs o quarto a render”, responde prontamente um dos rapazes. “Vens connosco?”, insiste.
“Não, joguem vocês. Eu…eu tenho que fazer.”
Desistindo, os garotos seguem o seu caminho. Raul vê-os desaparecer. Olha para o relógio e desata a correr, acelerado, através de algumas ruas, destorcidas à sua passagem. À medida que avança começa-se a ouvir cantar o fado, primeiro ao longe, depois cada vez mais perto. Raul detém-se à porta do café por pouco tempo e entra.

Cena 2
INTERIOR, CASA DE FADOS
Encostado à porta, não se admira ao ver o café cheio de estrangeiros animados, mas discretos. Entre sorrisos e este ou aquele comentário vê-se neles o respeito pela música, pelo vinho e pelo chouriço a fumegar. Só mais tarde, tocados pelo ambiente, pelo tinto ou, até quem sabe, embalados pelas cantorias, iniciariam longas conversas repletas de “Oh my God” e de risos estridentes.
O olhar que lhes deita é rápido. Sobrevoa as suas nucas para chegar ao palco, onde a rapariga que canta aperta o microfone entre as duas mãos, à medida que faz um grande crescente. Raul observa-a e solta uma lágrima. Canta bem, mas não o prende.
Ainda com o leito marcado sobre a face, sente que a sua presença foi notada. Manuel, com a guitarra portuguesa, olha na sua direcção, faz um movimento negativo com a cabeça e permanece com um ar triste, enrugado, vendo-o partir.

Cena 3
EXTERIOR, ALFAMA, FIM DE TARDE
Desta vez o sentido é o inverso, Raul rasga as ruas em direcção ao Castelo. O vento força-o a voltar, empurrando-o para baixo, mas ele não desiste. As lágrimas, que agora escorrem sem cessar, são disfarçadas pela velocidade com que sobe.
Alguns turistas, mais resistentes, que regressam do Castelo, passam por ele e voltam-se à sua passagem, não conseguindo mostrar a sua indiferença. Mas ele não vê ninguém e, quando finalmente atinge o miradouro, encontra-se sozinho. Cai de joelhos, ofegante. Cabeça quase no chão, e o seu cabelo, apesar de curto, completamente revirado… Todo ele do avesso. Por fora e por dentro.

Cena 4
EXTERIOR, MIRADOURO DO CASTELO, NOITE
(Flashback)
Fica noite. Berros. Confusão. Ao erguer a cabeça vê-se a si e a Mariana, naquele mesmo miradouro. Ela, visivelmente transtornada pergunta-lhe “Porquê?”. “Porquê é que não vais com a tua estrangeira para a terra dela?!”, grita e chora. Ele não responde, não a olha, finge olhar o horizonte. Então, em jeito de desespero, a jovem, de cabelos negros compridos, avança para ele de braços no ar, “Usás-te-a como me usas-te a mim, não foi?”. Ele vira-se e dá-lhe um estalo e ela cai no chão, de joelhos. Cabeça no chão...

Cena 5
EXTERIOR, MIRADOURO DO CASTELO, FIM DE TARDE
Raul volta a erguer a cabeça. Novamente sozinho e em silêncio, só com o vento de companhia, volta a o olhar a paisagem. Ao fundo, no rio, vê um barco afastar-se e começa a ouvir o fado.

Cena 6
INTERIOR, CASA DE FADOS
(Flashback)
Casa cheia. Dois guitarristas e uma jovem de cabelos negros. Mariana canta com a alma, e prende. Prende a todos e em todos se vê um brilho nos olhos. Maior nos de Raul que, na mesa da frente, não desvia por um segundo os olhos da sua amada. Está acompanhado, mas os outros homens, já um pouco bebidos, não o distraem por um segundo sequer. A jovem termina o fado e a sala enche-se de palmas. Mariana agradece, ergue a cabeça, vê – lo sorrir e sorri também.

EXTERIOR, MIRADOURO DO CASTELO, FIM DE TARDE
O barco desaparece.

Nenhum comentário: